12/10/2011

Bom dia, por Manuel da Fonseca

Bom dia

   Escada abaixo, quebrando, degrau a degrau, o sonolento silêncio do prédio, chegou-lhe aos ouvidos o distante pregão da mulher dos jornais. O pregão sonoro e lento, cantado, que era para ele como que o resumo de todos os pequenos acontecimentos que anunciavam o amanhecer da cidade.
   Na rua, reluzente de água, ainda fazia escuro. Uma baça claridade de cinza derramada, densa, sumia o alto dos prédios, desfocava as árvores. Perto, as ramagens desenhavam-se de folhas húmidas e verdes, nítidas. Depois, ficaram para trás, diluíram-se na espessura molhada do nevoeiro, que as apagou lentamente.
   De novo o pregão dos jornais, mais perto agora, soou. E, no curto espaço visível, em redondo, que acompanhava o homem, gente surgia. Gente admirada, como ele, daquela primeira manhã de névoa e de frio, após o Verão. E em todos os rostos esbatia-se um sorriso de vaga satisfação causado por aquele frio e aquela névoa.
   Inesperadamente, a mulher saiu de uma porta com o seu pregão gritado, e os densos véus de cinza derramada afastaram-se mais - a claridade cresceu, alargou-se em volta.
 - Bom dia - saudou o homem.
 - Bom dia - sorriu a mulher, enquanto lhe estendia o jornal.
   Adiante, vultos apinham-se sob o telheiro da paragem dos autocarros, e das quatro ruas que vêm dar à praça aparece cada vez mais gente.
   De luzes acesas, os automóveis, passam em fila. Pelo passeio, o homem caminha entre a multidão. E, enquanto caminha, pouco a pouco a multidão absorve-o. Agora , na neblina cada vez mais transparente, que paira sobre a cidade, torna-se parte da multidão. Uma pequena parte. Anónimo e indistinto. Um entre todos os que, a cada principar do dia, caminham para o trabalho.

Manuel da Fonseca - O vagabundo na cidade. Lisboa: Caminho, 2001. 124 p. ISBN 972-21-1398-4

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